sábado, 17 de setembro de 2016

Felicidade passageira

A cerveja esquenta
A comida esfria
A preguiça passa
O sapato novo aperta
Lições de sabedoria: saboreie o primeiro gole, a primeira garfada, o primeiro espreguiçar, os primeiros passos.

Paradoxo

Quando a voz de um é mais ruidosa do que a de um milhão
Ansiosa, busco em meio a multidão
O conforto do silêncio e solidão.

domingo, 31 de julho de 2016

Meus botões

" Ninguém manda no meu 'penso'!" Tão pequena que nem sabia a palavra pensamento. Rota de fuga de um mundo, por vezes, desagradável. Foi assim que comecei a conversar com meus botões e desenvolvi a capacidade de habitar concomitantemente dois mundos, o meu e o dos outros. Por vezes o dos outros, por ser muito ruidoso, tenta invadir o meu. Distrações podem ser fatais, como na música da Maysa:"meu mundo caiu e me fez ficar assim..." É, caiu porque o dos outros invadiu o seu! Respeito às fronteiras! 
Só meus botões sabem que meu mundo não tem tempo nem espaço. Não tenho idade nem preciso de passaporte. Com eles estive em bares na esquina da "Ipiranga com a Avenida São Jõao" e logo depois em "Saigon". Com eles piso na areia que é só minha e converso com um mar que fala a minha língua. O mar também entende meus botões. 
Meus queridos companheiros, cúmplices de estrepolias, amigos para todas as horas, seguiremos juntos. 

sábado, 2 de julho de 2016

O orto dos mitos

É no ventre de nossas inseguranças que gestamos os mitos. Bem alimentados teriam a missão de nos salvar de nossas incompletudes,  medos, fragilidades, incompentências. Tudo o que faz parte desse pobre ser humano, que além de pobre é inconformado com sua condição. Criamos mitos diversos, com funções bem definidas, mas algo devem ter em comum: todos devem remeter a uma marca de reconhecido valor. Reconhecido por outros criadores de mitos! A bolsa, o carro, o bairro, o intelectual, a universidade, a religião... Seu valor é avaliado pelo desejo dos outros. Nos angustiamos até fazer parte desse "grupo seleto" , mas, desavisados, damos à luz os cavaleiros do apocalípse. Os mitos nascem fortes, poderosos, alimentados pelo medo do qual deveriam nos salvar e, sem nos darmos conta, estamos mais fracos e dependentes. O orto dos mitos nos aprisiona em seu campo magnético.  Pequeno grão de areia gravitando em sua órbita. Para os que tiverem coragem de abrir mão da arrogância dos mitômanos existe a possibilidade da humildade dos que reconhecem seus  defeitos, e pelo caminho da iconoclastia, chegam à liberdade.

sábado, 4 de junho de 2016

Herança

Inventário dos bens a serem divididos entre minhas duas filhas e neta.
_ Lata de biscoitos, já com algumas marcas da passagem do tempo, com muitas meadas de linhas para bordar. 
_ Cesta de palha de milho contendo novelos de lã de diversas espessuras.
_ Caixa de costura com tampa de madeira com monograma. Contém muitos retroses.
_ Estojo de madeira pirogravado para agulhas de crochê e tricô.
_ Almofadinha de feltro recheada de cabelo para agulhas de mão. O cabelo evita que enferrujem.
_ Retalhos de tecido. Poderão ser usados para diversos fins: aplicações, fuxicos e, se engomados, flores.
_ Feltro de diversas cores. 
_ Tesourinha já um pouco enferrujada devido o longo uso.
Devo lembrar às herdeiras que o bom uso desses bens só será possível se nunca esquecerem de sonhar. Só pelo sonho conseguirão libertar o que surge do encontro de linhas e agulhas.
Façam sua parte, cuidem do legado e o preservem para as próximas.

domingo, 15 de maio de 2016

Trauma

Era uma vez um pinheirinho que vivia feliz ao lado de um muro. Alegrava-se e sorria a cada amanhecer, fizesse sol ou chovesse. Era novinho, mas já era sábio. Entendia de natureza. Sabia colher dela o que necessitava. Bem alimentado, crescia forte e imponente. Até que seu viço começou a incomodar quem vivia do outro lado do muro. Em uma noite particularmente escura o pinheirinho aprendeu uma triste lição sobre a natureza dos homens. Embuçado, pensando esconder no breu da noite as sombras de sua maldade, o vizinho aproxima-se o pinheirinho e o mutila. Atinge-o na parte mais tenra. Arranca em um só golpe o broto de onde sairiam novas folhas.
Quem disse que pinheirinhos não choram? Choram e sangram! 
Alguém que passava, e que sabia conversar com plantas, ouviu aquele lamento. Seguindo o som daquela dor logo encontrou o pinheirinho que lhe relatou o ocorrido. Contou que lhe doía muito o corpo, mas que não era menor a dor da alma pois havia visto o horror da maldade.
Compadecida a pessoa propôs ao pinheirinho que tentassem juntos uma operação delicada: um transplante. Poderia doer pois teria que tocar em suas raízes. O pinheirinho concorda pois intuira que desse risco poderia vir a salvação de seu corpo e um curativo para sua alma. Reencontrara a bondade e com ela conheceu a esperança.
Foi transportado para um terreno longe de muros. Todos os dias recebia a visita de seu amigo que lhe dizia palavras de conforto e de estímulo. Bem devagarinho convalesceu e em uma manhã radiosa percebeu que lhe nascera um novo broto bem ao lado da cicatriz do que lhe tinha sido arrancado. Alegrou-se tanto que naquele ano produziu mais folhas do que nunca e retomou seu caminhar em direção ao alto como era de sua natureza. Não que pretendesse alcançar o céu. Longe disso. Nada de arrogâncias. Só queria que ao olharem para suas folhas mais altas vissem também o céu e percebessem a maravilha da liberdade.
Durante toda sua longa vida cumpriu essa missão com excelência pois além de suas folhas viçosas exibia a cicatriz que lhe havia marcado a carne feita por alguém que preferia muros à liberdade.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O Ser e o Tempo

Heiddegger que me perdoe o plágio. Ele ficará  restrito ao tîtulo. Meu objeto de atenção é uma das belezas da língua portuguesa. O SER substantivo e o SER verbo. Meu SER substantivo está definitivamente misturado, amalgamado, imbricado ao SER verbo. Na conjugação de seus tempos verbais me defino. Meu TEMPO é o TEMPO dele.
FUI, SOU e SEREI. Define o Ser substantivo.
ERA, É, SERÁ. Define o Tempo desse ser substantivo.
Passado, presente e futuro.
A passagem do tempo tem sobrecarregado meu banco de memória. Sou testemunha de tantos tempos. Já vivi tantas histõrias. Já FUI tantas. Hoje SOU o resultado disso tudo. Para o SEREI guardo minha curiosidade. O que SERÁ será, só o TEMPO dirá.


domingo, 20 de março de 2016

A minha Paulista

A minha Paulista tinha só duas faixas.
A minha Paulista tinha casarões e jardins.
A minha Paulista tinha um Trianon sem grades.
A minha Paulista não tinha ciclovias, mas eu andava de bicicleta sem medo.
A minha Paulista era só uma avenida que atravessava para ir ao colégio.
Envelheci sem plásticas, mas a minha Paulista não. Foi sendo "plastificada". Sumiram os casarões e os jardins e em seus lugares cresceram grades e alarmes adubados pelo tal do poderio econômico do qual a Paulista virou um triste ícone. Grades reais e simbólicas de separação, de distanciamento. O "E" sumiu, o "Ou" impera. Eu ou você. 
Hoje a Paulista é o palco do "Ou" ! O palco onde se combate uma guerra entre dois exércitos de " Walking deads" ! Mortos porque não pensam. Mortos porque movidos pelo ódio que os faz defenderem suas frágeis posições que não resistiriam ao mais leve raio de pensamento. Ocupadíssimos em um cabo de guerra. O mais esperto fica com o butim da guerra. E por algum tempo vão se alimentar de despojos, rindo como hienas. Até que sobrevenha nova guerra, porque nada mudou. Mudança só com muito esforço, humildade e coragem para enfrentarmos o mal maior que iguala exércitos: a COBIÇA, a ganância, o "Ou". 
Sou bem velha, mas ainda não perdi a esperança no "Nós" ! 

sábado, 12 de março de 2016

Sozinho?

Noite após noite, pedacinho a pedacinho, a colcha vai sendo tecida. Ela tem um destino muito especial. A importância desse destinatário faz com que ela coloque em seu trabalho um capricho e um cuidado especiais. A maciez da lã é essencial, na combinação das cores buscou a harmonia perfeita. Tecendo e pensando naquele que iria receber o presente. Será que ele gostaria? Iria sentir-se aconchegado com ela? Por quanto tempo a colcha permaneceria com ele? De quantos sonhos dele ela seria testemunha?
Foram muitas noites e muitos pensamentos. Quando finalmente deu por encerrado o trabalho, olhando criteriosamente para avaliar o resultado de sua dedicação, percebeu que tramado junto com cada ponto havia além dos fios coloridos todos os pensamentos que dedicará ao destinatário. Afinal tecera uma colcha de crochê e sonhos.
Entregou-o finalmente. Esperava algum retorno, mas jamais poderia imaginar o que receberia.
Na manhã seguinte, o toque do telefone e aquela vozinha tão querida.
- Vó, a colcha tem teu cheiro, então já posso dormir sozinho !

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Sobras e Restos

Quando pequena, as refeições eram um tormento. Sentada bem posta, ao redor de uma mesa bem posta, fazia parte do cenário de uma família bem posta. Tudo em seus lugares. Todos os papéis bem definidos. A peça transcorria como o esperado até que ela, dentes cerrados recusava-se a engolir a última porção da comida. 
O Pai: "Não sai da mesa enquanto não terminar"
 A Mãe: "Vamos, querida, falta tão pouquinho!" 
Nem ameaças, nem argumentos, nada surtia efeito. Os dentes trancados. O pai se enfurecendo e a mãe se afligindo. Ela havia novamente estragado o cenário. Ninguém nunca se lembrou de perguntar à menina qual a causa da recusa. Dar voz a uma criança não estava no script. Teria sido tão simples! Não comia a última porção porque queria conservar o sabor gostoso da comida quentinha, devorada com apetite e não aquela sobra já fria.
Cresceu forte, apesar de nunca ter comido o restinho. Foi ter sua própria mesa bem posta onde os comensais não eram obrigados a "limpar o prato"!  Tinha sua mesa, sua sala, sua copa, sua cozinha. Nessa cozinha restos e sobras são proibidos. Eles são seres hermafroditas que se reproduzem "ad eternum". Têem um poder maléfico de tirar o gosto do novo, do vivo, do quente. 
Da mesm forma que cozinha, vive e quer a vida enquanto ela estiver saborosa e quente, quer devorá-la com apetite. Vai trancar os dentes para vida requentada, para restinhos.