domingo, 27 de setembro de 2015

Usina de memórias

Setembro chegou de novo! Ufa! Sobrevivi a mais um inverno. Como as plantas, vou acordando de um sono letárgico e sem sonhos. O perfume do primeiro jasmim é o combustível dessa usina que começa a funcionar a todo vapor. 
Memórias de verões, de cheiros da palmeira Cica, de casa enfeitada para o Natal, de comidinhas de fim de ano, de pele amorenada pelo sol, de andanças pela praia acompanhada pelo murmúrio do mar, de sonhos que prescindem de realização.
Até que cheguem às águas de março, a usina terá fabricado mais uma infinidade de memórias que me alimentarão até o próximo setembro para que eu possa sobreviver a mais um inverno.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Um homem pra chamar de seu...

Moça humilde e romântica do interior chega na capital para trabalhar em " casa de família" . Além de sua mala de papelão, com os cantos já roídos, onde guarda seus poucos pertences, traz seus préstimos domésticos e um sonho. Pretendia realizá-lo assim que recebesse seu primeiro salário. Mesmo que tivesse que gastá-lo inteiro iria assistir a uma apresentação do cantor adorado. Vê-lo em carne e osso, não mais através da telinha com que preenchia suas noites solitárias.
E assim fez. Tornou-se assídua. A paixão aumentando e se alimentando daqueles poucos momentos. Percebe, mas não quer ver, que como ela existem tantas.
Peça após peça, bordava um enxoval caprichado. Mas, as noites continuavam solitárias.
Durante o dia cumpria com esmero suas tarefas domésticas. Tão responsável era que a patroa passou-lhe até a incumbência de fazer as compras no super mercado. Nessas idas e vindas começou a perceber o sorriso e o tímido aceno do jovem zelador do prédio vizinho. Se bem que os dentes não fossem pérolas como os de seu ídolo, eram mais verdadeiros. Aceita o convite para saírem na noite de folga de ambos. Estava mais tímida e nervosa do que quando chegara na capital. Então ela viera pisando em nuvens, agora tinha a seu lado alguém que falava COM ela. Só na manhã seguinte percebeu que naquela noite não fora dormir pensando no cantor e ficou com vontade de mais noites assim. E vieram muitas. 
Hoje a moça romântica do interior borda mais um enxovalzinho para alguém que está para chegar.
Tranquila espera seu homem que chega cansado mas que sempre tem um sorriso PARA ELA.

domingo, 20 de setembro de 2015

Nós ou Eles?

Ela. Passinhos miúdos de pés grotescos. Que extremo mau gosto colocou aquele vermelho naqueles dedos magros, nervosos? Pernas curtas que mal sustentam o corpo sem graça. Seu gingado está no pescoço, não nos quadrís.
No entanto, naquele momento, desfila lânguidamente suas mazelas. Expõe-se, exibe-se. Sente-se linda, palatável ( para não usar o termo popular : gostosa!). Átimos de uma felicidade desconhecida.
Ele. Olhar cúpido, voraz, guloso. Seu grande trunfo, sua arma infalível! No mais é vulgar, mal ajambrado. Tão desprovido que raramente consegue quem lhe acolha os olhares, contenta-se com sobras, mas ele deseja, como deseja! Imóvel, estático. Seduzido pelo prazer de seduzir.
Ela quer um tempo longo, seu prazer não demanda um encontro. Não precisa de mais nada além daquele olhar.
Ele não; urge que a toque, que a possua, que a devore. Precisa satisfazer esse desejo mesmo sabendo que o tormento de outro nascerá!
Em alta velocidade, um carro faz a curva. Um leve movimento da mão do motorista salva-lhes a vida mas não o encanto. O gato vadío salta para o muro próximo e a pomba assustada alça um arremedo de vôo.

domingo, 13 de setembro de 2015

Bonecas

"Vende-se bonecas antigas em perfeito estado de conservação. Ainda nas caixas." 
Ai que pena! Ninguém nunca brincou com elas. Jazem congeladinhas em seus esquifes de papelão. Aprisionadas na espera de alguém que desarrumasse seus cabelos, que fizesse novos penteados despenteados, que trocasse suas roupinhas por outras que nem seriam tão perfeitas, mas seriam muito mais macias. Nessa espera, elas perdem a confiança em seus sorrisos. Afinal eles não foram capazes de conquistar ninguém. Suas bochechinhas são as partes mais endurecidas pelo descaso.
Dói mais saber que nem sempre foram assim.
Era uma vez uma boneca, de longos cabelos negros e lisos. Fora presenteada a uma menina carrancuda, que, sabe-se lá porquê, não se encantou pela boneca. Deixou-a em um canto do quarto e às vezes, muito às vezes, tirava o pó da caixa. Nessas ocasiões a boneca tentava captar-lhe o olhar, caprichava no sorriso. Em vão. Foram tantas tentativas frustradas que a boneca entristeceu.
Muito tempo depois, essa boneca "em perfeito estado de conservação" foi presenteada a outra menina. É, de fato, o corpinho estava perfeito, mas a alminha....
Essa nova dona apaixonou-se pela boneca. Logo quis brincar. Tirou da caixa, trocou a roupinha, fez trancinhas e foi dormir feliz.
Na manhã seguinte lá estava a boneca dentro da caixa, com suas roupas engomadas e os cabelos escorridos. A menina imaginou que tivesse sonhado de brincar e brincou tudo de novo. Em vão. A boneca não sabia brincar. Por algum tempo a menina entristeceu. Depois, porque tivesse o vício da felicidade, a menina guardou a boneca em um lugar quentinho do coração, aceitou o fato de que ela, coitadinha, não sabia mais brincar, e foi pela vida brincando de escrever histórias de bonecas.