domingo, 30 de agosto de 2015

Retratos sem retoque

Vou começar por um auto-retrato.
Escribas, escrivães, escritores. Profissões de reconhecido valor. Documentaristas da história. Escrevem porque querem, não porque precisem. Não posso ser incluída em nenhuma dessas categorias. Escrevo porque preciso.Para me livrar do incômodo de ter idéias voejando dentro de minha cabeça. Idéias autônomas que se apresentam sem ser convidadas. Entram pelos olhos, pelos ouvidos. Alguma coisa que chame minha atenção e pronto, lá estão elas. Então acho que me defino melhor como uma retratista que usa as palavras no lugar de câmeras. Retratista que não sabe usar recursos tecnológicos, nem fazer retoque.
Cenário: praia. Um menino em uma cadeira de rodas empina uma pipa. 
Outro cenário: avenida. Bateria de uma escola de samba.
Pronto, lá estão elas perturbando meu sossego. A primeira acentua minhas rugas mas não choro, a segunda aumenta meu sorriso e choro. A dor me provoca revolta, a beleza lágrimas. Cartola, Lupicinio, Piazolla me devem caixas de lenços. Sou, portanto, uma incoerência ambulante.
Retratos fiéis é o que minhas idéias precisam para me deixar em paz. Uma vez transformadas em palavras retratarão personagens, sentimentos e situações reais. Nada é invenção. Instantâneos da vida real captados por uma câmera sem recursos.
Acho que muito mais do que textos, são retratos do teatro mambembe da vida. Artistas surpreendidos sem as máscaras que carregam por aí, por tanto tempo que, às vezes, se tornam mais reais do que o rosto que encobrem. O portador desaparece e a cobertura cria vida própria.
 Juntando esses retratos terei um álbum que só será testemunha do que vi enquanto estive por aqui.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mais do mesmo

Apesar dos pesares quero mais do mesmo. Afinal se tropeçamos nos pesares também cruzamos com os prazeres. Por isso quero mais do mesmo.
Mais de alegrar e entristecer.
Mais de admirar e decepcionar.
Mais de sonhar e acordar.
Mais de conviver e afastar.
Mais de compreender e criticar.
Mais de lembrar e esquecer.
Mais de aprender. Aprender a viver!

domingo, 23 de agosto de 2015

Saltos

Era uma escada linda. Tendo atravessado muitos mares, o mármore encontrara seu destino naquelas curvas suaves e amplas. A bem da verdade não era um destino tão glorioso quanto o de seus semelhantes que terminaram nas mãos de um Michelângelo ou um Bernini. Tornara- se só uma escada do lado de cá do Atlântico. Estava muito acostumada a acolher os saltos displicentes da jovem  que achava que subir degraus um a um era desperdício de tempo. A vida era pouca para tanto que precisava experimentar!
Naquele dia a escada recebera um tratamento especial. Estava adornada por uma profusão exagerada de flores. Como sempre a menina sobe risonha aos saltos. 
Pouco depois assoma em seu ponto mais alto, a jovem transformada em noiva suntuosa.
Há uma sutil discordância entre a garota e suas vestes, mas ela, o rosto agora serio, as empunha soberbamente como lhe haviam ensinado a fazer.
Um primeiro passo iniciando a longa descida. O salto do sapatinho delicado enrosca- se em um dos incontáveis saiotes que usava para avolumar- lhe as formas quase infantís.
Um salto para o vazio. 
Lentamente o sangue tinge as rendas agora tão inúteis.
Nenhuma experiência mais.

domingo, 16 de agosto de 2015

Momentos de Sabedoria ( Segundo Pessoa, Saramago, Raul Seixas e outros )

Se existisse substantivo relativo, Felicidade seria um. Conceito que não existe em si mesmo, só em relação a outro: Dor. Esse sim substantivo próprio, que embora categorizado como abstrato é mais concreto do que aquele obtido a partir do cimento.
Felicidade: Intervalo entre dores.
Momentos felizes: Prenúncio de saudade.
Fugacidade: O tempo da felicidade.
Lucidez: Aquilo que estraga a felicidade.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

....uma tarde de domingo....

Bah!  Acho que vou me suicidar! Só para fazer algo criativo nessas horas turvas que se repetem inexoravelmente a cada sete dias.
Horas turvas, indefinidas, sem graça. Não servem nem para o lazer, nem para o trabalho. Para o lazer é tarde, para o trabalho é cedo. 
Tentar preenchê- lãs com a programação da Tv é oferecer- se em imolação ao deus do aborrecimento.
Resta o refúgio da leitura, mas isso é um desrespeito com os livros. A presença escamoteada dessas horas insossas tira- lhes o sabor.
Xiii! Acabei de me lembrar que não tenho banheira! Suicídio cortando os pulsos tem que ser dentro de banheira. Bem cinematográfico e prático. 
Preciso de outras idéias para o próximo domingo. Desse já me safei!

domingo, 2 de agosto de 2015

Confiteor (Confiteor Deo omnipotnti)

Confesso que sou vaidosa, orgulhosa, agressiva, incapaz de sentir culpa portanto incapaz de me arrepender. Ih! Acho que serei excomungada!
Vaidosa porque gosto de mostrar meus escritos e sempre espero que alguns se agradem deles, embora saiba que outros estarão assoprando as brazinhas do inferno.
Orgulhosa porque sempre pedirei trabalho, esmola nunca.
Agressiva porque não precisarei nem de arma de fogo, nem de arma branca para defender um ser querido. As unhas serão suficientes. 
Terei em minha defesa no juízo final o fato de ser cruelmente honesta, portanto não tenho nada do que me arrepender! 
Se honestidade vale alguma coisa meu passaporte para a felicidade já está carimbado!

Memórias olfativas

Acho que consigo, pelo cheiro da serragem, distinguir de que madeira ela provém. Também consigo dizer que prato está sendo preparado pelo cheiro do tempero ( salsão, noz moscada...) Pai e mãe.
Entrei no mundo pelas " vias olfativas" . A partir daí, afetos e olfato não se desgrudaram mais!
Alegria, tristeza, saudade.... Maresia, tinta a óleo - a de pintar quadros, não a de parede - , polenta com leite quente e açúcar, café, grama aparada, terra molhada, pescocinho de bebê, barriga de cachorrinho novo, um perfume que não existe mais - Schiaparelli - ! A lista não tem fim porque a vida é cheirosa!
E porque é vida tem também as repugnâncias: roupa usada, hábito de freira... Distingo repugnante de desagradável, desagradável é mofo.
Só não consigo distinguir muito bem o cheiro da raiva, talvez porque seja muito parecido com o do medo...

sábado, 1 de agosto de 2015

Formigueiro

Movem- se. Correm de lá para cá tão cheios de propósitos. Não param nunca. A manutenção de seu mundo está na razão direta do movimento. Para que tudo fique em seu lugar urge que corram. Iludem-se pensando que correm "para". Tolice, correm "de", ou melhor, correm "dela". Daquela presença tão fiel, tão constante, tão familiar: nossa velha solidão. Por que tanto medo?  Acomode-a quietinha a seu lado que ela lá ficará tranquila e feliz. Convívio tranquilo e pacífico. Afinal, ela só lhe morde os calcanhares porque sofre de rejeição!