segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Sobras e Restos

Quando pequena, as refeições eram um tormento. Sentada bem posta, ao redor de uma mesa bem posta, fazia parte do cenário de uma família bem posta. Tudo em seus lugares. Todos os papéis bem definidos. A peça transcorria como o esperado até que ela, dentes cerrados recusava-se a engolir a última porção da comida. 
O Pai: "Não sai da mesa enquanto não terminar"
 A Mãe: "Vamos, querida, falta tão pouquinho!" 
Nem ameaças, nem argumentos, nada surtia efeito. Os dentes trancados. O pai se enfurecendo e a mãe se afligindo. Ela havia novamente estragado o cenário. Ninguém nunca se lembrou de perguntar à menina qual a causa da recusa. Dar voz a uma criança não estava no script. Teria sido tão simples! Não comia a última porção porque queria conservar o sabor gostoso da comida quentinha, devorada com apetite e não aquela sobra já fria.
Cresceu forte, apesar de nunca ter comido o restinho. Foi ter sua própria mesa bem posta onde os comensais não eram obrigados a "limpar o prato"!  Tinha sua mesa, sua sala, sua copa, sua cozinha. Nessa cozinha restos e sobras são proibidos. Eles são seres hermafroditas que se reproduzem "ad eternum". Têem um poder maléfico de tirar o gosto do novo, do vivo, do quente. 
Da mesm forma que cozinha, vive e quer a vida enquanto ela estiver saborosa e quente, quer devorá-la com apetite. Vai trancar os dentes para vida requentada, para restinhos.