domingo, 13 de dezembro de 2015

Orfandade

Orfandade não é perder pai e mãe. É perder quem com que se compartilhou risos e lágrimas desde que se tem memória. É perder a doce sensação de cumplicidade. É perder quem cuja presença pode ser compartilhada no silêncio. É perder quem cujo aço foi temperado pelo mesmo fogo. É perder o lugar onde o entendimento dispensa palavras. Solidão maiúscula. 

domingo, 6 de dezembro de 2015

Alienada

Estou negaceando para iniciar essa conversa. Até porque falar de política nesse espaço tão querido não é fácil, mas em algum momento perdi a capacidade de ser alienada. Que pena! A vida seria bem mais fácil.
Acabo de ser invadida por uma declaração da Sra. Dilma Rouseff dizendo-se inocente de qualquer ato ilícito. Deixo para os juristas a classificação das atitudes dessa senhora. Para mim é suficiente lembrar ensinamentos antigos. Aquele que finge não ver o crime é tão culpado quanto aquele que o comete. Será que ela conseguiu manter-se alienada?
Aos que não conseguiram cobra-se atitudes. Quais? De novo a alienação facilitaria tudo. Acreditaríamos que o mal, a ilegalidade, o crime seriam quesitos de um único partido. Acabando com ele estaríamos a um passo do paraíso. Seríamos os anjos vingadores. Tudo o que não fosse o lugar do mal consequentemente seria o do bem. Tão fácil trocar uma bandeira por outra.
Olha ela aî de novo! Alinação. E aí a cegueira se estende para a espécie humana. O poder corrompe. 
Podemos trocar os partidos, mas ainda não desenvolvemos vacina contra esse mal. MAL maiúsculo. Ser humano, o seu hospedeiro.
Desesperança? Não. Atenção. Não ofereçamos as condições propícias para que ele se desenvolva .

domingo, 29 de novembro de 2015

Determinações finais

Assim como não deleguei à vida autoridades sobre minha mente não delegarei à morte decisões sobre meu corpo. Quero que ele seja transformado em cinza e espargido à beira mar da praia que amo. Prazeirosamente acompanharei o movimento das ondas até o final dos tempos. 

Nossa vã filosofia

A falta é o tempero do encontro e a felicidade mora apertadinha entre uma e outro. Temer a dor da falta acaba com o binômio e a felicidade perde sua morada.

domingo, 22 de novembro de 2015

Portas e Janelas

Dentre tantos modelos à disposição, desde as mais singelas até as mais suntuosas, prefiro as portas abertas. Aquelas em que para anunciarmos nossa chegada batemos palmas e iniciamos um diálogo:
- Ó de casa!
- Quem vem lá?
Se a porta está aberta supomos que somos bem vindos ao mundo de quem está do outro lado.
A bem da verdade não é bem uma porta, é mais uma passagem entre o mundo de fora e o de dentro, em qualquer sentido que se queira tomar fora e dentro. Ao atravessarmos esse umbral encontraremos  água fresca de moringa de barro, chão de vermelhão tão encerado que até brilha, cortinas branquinhas e transparentes, samambaias que se alimentam de carinho e de cuidado, doce de mamão verde e de cidra, relógio que marca um tempo que não tem medida, não é hoje nem ontem, é sempre.
Janelas tem uma vantagem sobre as portas: não ficam ao rés do chão. Estão mais distantes do real e mais perto do sonho. Delas também só gosto das abertas e quanto mais amplas melhor. Sonhos precisam de espaço para bater as asas. Se cortinas houver que sejam branquinhas e transparentes, só para modular a luz. Do lado de lá das janelas nunca se sabe o que se vai encontrar. Para sonhar é necessário abrir mão das expectativas, lançar-se no vazio e permitir que o que estiver do outro lado acione nosso reservatório de sonhos. Outras janelas onde se vislumbre sombras, um abajur aceso, uma mesa posta ( para quantas pessoas? ), um tapete puído, ou cortinas tão pesadas que quase são paredes. O que vejo é o que é ou é o que sonho? 
Para mim o que sonho é o que é.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Homenagem ao silêncio

O que seria da música se não fossem as pausas. O que seria das emoções se não fosse o silêncio. Deixo, para quem tiver chegado até aquí, meu silêncio para que cada um o preencha com suas emoções.

domingo, 8 de novembro de 2015

Iconoclasta

Em nossa cultura tupiniquim, para ser considerada uma pessoa culta é fundamental que tenhamos lido Euclides da Cunha, James Joyce, que adoremos Clarice Lispector, que veneremos Bach e por aí vai. Caso me falte algum dos requisitos acima ou que ouse tecer alguma crítica serei considerada menos esclarecida, invejosa e que com essa mente pequena jamais alcançarei tais grandezas. Será que me salvo se tiver lido a Divina Comédia em italiano? Só que gostei mais do livro do Inferno. Acho que é porque lá é o lugar dos invejosos.
Para completar minha condenação vou estender a lista. Elis Regina, Cazuza, Renato Russo, Freud...
O problema para mim é que ídolos tendem à universalidade e a eternidade, certamente muito mais por culpa de seus cultuadores do que por eles mesmos. Todos tiveram seus bons e seus maus momentos, suas genialidades e suas mediocridades. Mesmo essas genialidades dependem do tempo e do espaço em que manifestaram, mas para os idólatras qualquer gesto deles é majestático. Nas mídias divulga-se que Freud gostava de cachorros. O morador de rua que dorme embaixo da marquise também. Será que o cachorro gostava de Freud? Aí sim ele subiria no meu conceito.
Acho que só me resta voltar para a Divina Comédia....


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Complexo de Deus

Realmente o ser humano é único na natureza. Não tenho conhecimento de nenhuma espécie que se vanglorie de suas mazelas e que se utilize de todos os meios para divulgá-las. Provavelmente porque não as acredite mazelas mas virtudes. Interfere arrogantemente onde lhe aprouver. "Afinal o que é bom para mim certamente é bom para todos." 
Imagens divulgadas em redes virtuais:
Uma árvore impedida de atingir seu desenvolvimento normal é exibida como arte. 
Um fogoso cavalo é domesticado a ponto de anular sua natureza e obedecer à sua sorridente e orgulhosa cavaleira e mergulhar de um trampolim.
Cães vestidos como pessoas ou travestidos de acordo com as fantasias de seus donos.
Uma grande arara azul deitada como um bebê em um colo amoroso. "Áfinal se bebês gostam de colo, araras também tem que gostar!"
"Tudo tem que ser feito à minha imagem e semelhnça,"

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Consolo Inútil

Voltávamos das férias. No alto da serra minha neta de três anos diz:
- Vovo já estou com saudades de Santos!
A tia à guisa de consolo:
- Ah! Mas daqui a pouco você já vai encontrar seu cachorrinho que ficou em São Paulo.
-É mas agora estou com as duas saudades!
Tentativa amorosa mas inútil de tentar afastar o sofrimento da criança querida. Ela já havia experimentado a dor da falta.

sábado, 24 de outubro de 2015

Sem medo de ...

Na área de lazer de um edifício avó e neto compartilham a manhã tranquila. Atenta ela observa o garotinho absorto em sua brincadeira/verdade. Havia desprezado o baldinho e pazinha que trouxera de casa dando preferência a um potinho usado que encontrara no tanque de areia. Concentrado em seus pensamentos, enchia o potinho com areia e vinha depositá-la próximo aos pés da avó. Refez o trajeto diversas vezes até obter um morrinho. Com seus grandes olhos azuis encara a avó e a faz participante de sua brincadeira:
- Agora vamos destruir?
O sorriso da avó liberta o gesto. Alegremente ele salta sobre a areia e desfaz o morrinho. Logo em seguida, usando o mesmo potinho, coloca um pouco da mesma areia e oferece à avó.
- Agora é cafezinho. Bebe.
Pequeno sábio. Não tem medo de destruir para transformar. 

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Quem tem medo de ...

Quem tem medo de quarto escuro fecha a porta. Quem tem medo de ladrão também fecha a porta. Eu tenho medo de fechar a porta e ficar do lado de dentro! 

domingo, 27 de setembro de 2015

Usina de memórias

Setembro chegou de novo! Ufa! Sobrevivi a mais um inverno. Como as plantas, vou acordando de um sono letárgico e sem sonhos. O perfume do primeiro jasmim é o combustível dessa usina que começa a funcionar a todo vapor. 
Memórias de verões, de cheiros da palmeira Cica, de casa enfeitada para o Natal, de comidinhas de fim de ano, de pele amorenada pelo sol, de andanças pela praia acompanhada pelo murmúrio do mar, de sonhos que prescindem de realização.
Até que cheguem às águas de março, a usina terá fabricado mais uma infinidade de memórias que me alimentarão até o próximo setembro para que eu possa sobreviver a mais um inverno.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Um homem pra chamar de seu...

Moça humilde e romântica do interior chega na capital para trabalhar em " casa de família" . Além de sua mala de papelão, com os cantos já roídos, onde guarda seus poucos pertences, traz seus préstimos domésticos e um sonho. Pretendia realizá-lo assim que recebesse seu primeiro salário. Mesmo que tivesse que gastá-lo inteiro iria assistir a uma apresentação do cantor adorado. Vê-lo em carne e osso, não mais através da telinha com que preenchia suas noites solitárias.
E assim fez. Tornou-se assídua. A paixão aumentando e se alimentando daqueles poucos momentos. Percebe, mas não quer ver, que como ela existem tantas.
Peça após peça, bordava um enxoval caprichado. Mas, as noites continuavam solitárias.
Durante o dia cumpria com esmero suas tarefas domésticas. Tão responsável era que a patroa passou-lhe até a incumbência de fazer as compras no super mercado. Nessas idas e vindas começou a perceber o sorriso e o tímido aceno do jovem zelador do prédio vizinho. Se bem que os dentes não fossem pérolas como os de seu ídolo, eram mais verdadeiros. Aceita o convite para saírem na noite de folga de ambos. Estava mais tímida e nervosa do que quando chegara na capital. Então ela viera pisando em nuvens, agora tinha a seu lado alguém que falava COM ela. Só na manhã seguinte percebeu que naquela noite não fora dormir pensando no cantor e ficou com vontade de mais noites assim. E vieram muitas. 
Hoje a moça romântica do interior borda mais um enxovalzinho para alguém que está para chegar.
Tranquila espera seu homem que chega cansado mas que sempre tem um sorriso PARA ELA.

domingo, 20 de setembro de 2015

Nós ou Eles?

Ela. Passinhos miúdos de pés grotescos. Que extremo mau gosto colocou aquele vermelho naqueles dedos magros, nervosos? Pernas curtas que mal sustentam o corpo sem graça. Seu gingado está no pescoço, não nos quadrís.
No entanto, naquele momento, desfila lânguidamente suas mazelas. Expõe-se, exibe-se. Sente-se linda, palatável ( para não usar o termo popular : gostosa!). Átimos de uma felicidade desconhecida.
Ele. Olhar cúpido, voraz, guloso. Seu grande trunfo, sua arma infalível! No mais é vulgar, mal ajambrado. Tão desprovido que raramente consegue quem lhe acolha os olhares, contenta-se com sobras, mas ele deseja, como deseja! Imóvel, estático. Seduzido pelo prazer de seduzir.
Ela quer um tempo longo, seu prazer não demanda um encontro. Não precisa de mais nada além daquele olhar.
Ele não; urge que a toque, que a possua, que a devore. Precisa satisfazer esse desejo mesmo sabendo que o tormento de outro nascerá!
Em alta velocidade, um carro faz a curva. Um leve movimento da mão do motorista salva-lhes a vida mas não o encanto. O gato vadío salta para o muro próximo e a pomba assustada alça um arremedo de vôo.

domingo, 13 de setembro de 2015

Bonecas

"Vende-se bonecas antigas em perfeito estado de conservação. Ainda nas caixas." 
Ai que pena! Ninguém nunca brincou com elas. Jazem congeladinhas em seus esquifes de papelão. Aprisionadas na espera de alguém que desarrumasse seus cabelos, que fizesse novos penteados despenteados, que trocasse suas roupinhas por outras que nem seriam tão perfeitas, mas seriam muito mais macias. Nessa espera, elas perdem a confiança em seus sorrisos. Afinal eles não foram capazes de conquistar ninguém. Suas bochechinhas são as partes mais endurecidas pelo descaso.
Dói mais saber que nem sempre foram assim.
Era uma vez uma boneca, de longos cabelos negros e lisos. Fora presenteada a uma menina carrancuda, que, sabe-se lá porquê, não se encantou pela boneca. Deixou-a em um canto do quarto e às vezes, muito às vezes, tirava o pó da caixa. Nessas ocasiões a boneca tentava captar-lhe o olhar, caprichava no sorriso. Em vão. Foram tantas tentativas frustradas que a boneca entristeceu.
Muito tempo depois, essa boneca "em perfeito estado de conservação" foi presenteada a outra menina. É, de fato, o corpinho estava perfeito, mas a alminha....
Essa nova dona apaixonou-se pela boneca. Logo quis brincar. Tirou da caixa, trocou a roupinha, fez trancinhas e foi dormir feliz.
Na manhã seguinte lá estava a boneca dentro da caixa, com suas roupas engomadas e os cabelos escorridos. A menina imaginou que tivesse sonhado de brincar e brincou tudo de novo. Em vão. A boneca não sabia brincar. Por algum tempo a menina entristeceu. Depois, porque tivesse o vício da felicidade, a menina guardou a boneca em um lugar quentinho do coração, aceitou o fato de que ela, coitadinha, não sabia mais brincar, e foi pela vida brincando de escrever histórias de bonecas.

domingo, 30 de agosto de 2015

Retratos sem retoque

Vou começar por um auto-retrato.
Escribas, escrivães, escritores. Profissões de reconhecido valor. Documentaristas da história. Escrevem porque querem, não porque precisem. Não posso ser incluída em nenhuma dessas categorias. Escrevo porque preciso.Para me livrar do incômodo de ter idéias voejando dentro de minha cabeça. Idéias autônomas que se apresentam sem ser convidadas. Entram pelos olhos, pelos ouvidos. Alguma coisa que chame minha atenção e pronto, lá estão elas. Então acho que me defino melhor como uma retratista que usa as palavras no lugar de câmeras. Retratista que não sabe usar recursos tecnológicos, nem fazer retoque.
Cenário: praia. Um menino em uma cadeira de rodas empina uma pipa. 
Outro cenário: avenida. Bateria de uma escola de samba.
Pronto, lá estão elas perturbando meu sossego. A primeira acentua minhas rugas mas não choro, a segunda aumenta meu sorriso e choro. A dor me provoca revolta, a beleza lágrimas. Cartola, Lupicinio, Piazolla me devem caixas de lenços. Sou, portanto, uma incoerência ambulante.
Retratos fiéis é o que minhas idéias precisam para me deixar em paz. Uma vez transformadas em palavras retratarão personagens, sentimentos e situações reais. Nada é invenção. Instantâneos da vida real captados por uma câmera sem recursos.
Acho que muito mais do que textos, são retratos do teatro mambembe da vida. Artistas surpreendidos sem as máscaras que carregam por aí, por tanto tempo que, às vezes, se tornam mais reais do que o rosto que encobrem. O portador desaparece e a cobertura cria vida própria.
 Juntando esses retratos terei um álbum que só será testemunha do que vi enquanto estive por aqui.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mais do mesmo

Apesar dos pesares quero mais do mesmo. Afinal se tropeçamos nos pesares também cruzamos com os prazeres. Por isso quero mais do mesmo.
Mais de alegrar e entristecer.
Mais de admirar e decepcionar.
Mais de sonhar e acordar.
Mais de conviver e afastar.
Mais de compreender e criticar.
Mais de lembrar e esquecer.
Mais de aprender. Aprender a viver!

domingo, 23 de agosto de 2015

Saltos

Era uma escada linda. Tendo atravessado muitos mares, o mármore encontrara seu destino naquelas curvas suaves e amplas. A bem da verdade não era um destino tão glorioso quanto o de seus semelhantes que terminaram nas mãos de um Michelângelo ou um Bernini. Tornara- se só uma escada do lado de cá do Atlântico. Estava muito acostumada a acolher os saltos displicentes da jovem  que achava que subir degraus um a um era desperdício de tempo. A vida era pouca para tanto que precisava experimentar!
Naquele dia a escada recebera um tratamento especial. Estava adornada por uma profusão exagerada de flores. Como sempre a menina sobe risonha aos saltos. 
Pouco depois assoma em seu ponto mais alto, a jovem transformada em noiva suntuosa.
Há uma sutil discordância entre a garota e suas vestes, mas ela, o rosto agora serio, as empunha soberbamente como lhe haviam ensinado a fazer.
Um primeiro passo iniciando a longa descida. O salto do sapatinho delicado enrosca- se em um dos incontáveis saiotes que usava para avolumar- lhe as formas quase infantís.
Um salto para o vazio. 
Lentamente o sangue tinge as rendas agora tão inúteis.
Nenhuma experiência mais.

domingo, 16 de agosto de 2015

Momentos de Sabedoria ( Segundo Pessoa, Saramago, Raul Seixas e outros )

Se existisse substantivo relativo, Felicidade seria um. Conceito que não existe em si mesmo, só em relação a outro: Dor. Esse sim substantivo próprio, que embora categorizado como abstrato é mais concreto do que aquele obtido a partir do cimento.
Felicidade: Intervalo entre dores.
Momentos felizes: Prenúncio de saudade.
Fugacidade: O tempo da felicidade.
Lucidez: Aquilo que estraga a felicidade.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

....uma tarde de domingo....

Bah!  Acho que vou me suicidar! Só para fazer algo criativo nessas horas turvas que se repetem inexoravelmente a cada sete dias.
Horas turvas, indefinidas, sem graça. Não servem nem para o lazer, nem para o trabalho. Para o lazer é tarde, para o trabalho é cedo. 
Tentar preenchê- lãs com a programação da Tv é oferecer- se em imolação ao deus do aborrecimento.
Resta o refúgio da leitura, mas isso é um desrespeito com os livros. A presença escamoteada dessas horas insossas tira- lhes o sabor.
Xiii! Acabei de me lembrar que não tenho banheira! Suicídio cortando os pulsos tem que ser dentro de banheira. Bem cinematográfico e prático. 
Preciso de outras idéias para o próximo domingo. Desse já me safei!

domingo, 2 de agosto de 2015

Confiteor (Confiteor Deo omnipotnti)

Confesso que sou vaidosa, orgulhosa, agressiva, incapaz de sentir culpa portanto incapaz de me arrepender. Ih! Acho que serei excomungada!
Vaidosa porque gosto de mostrar meus escritos e sempre espero que alguns se agradem deles, embora saiba que outros estarão assoprando as brazinhas do inferno.
Orgulhosa porque sempre pedirei trabalho, esmola nunca.
Agressiva porque não precisarei nem de arma de fogo, nem de arma branca para defender um ser querido. As unhas serão suficientes. 
Terei em minha defesa no juízo final o fato de ser cruelmente honesta, portanto não tenho nada do que me arrepender! 
Se honestidade vale alguma coisa meu passaporte para a felicidade já está carimbado!

Memórias olfativas

Acho que consigo, pelo cheiro da serragem, distinguir de que madeira ela provém. Também consigo dizer que prato está sendo preparado pelo cheiro do tempero ( salsão, noz moscada...) Pai e mãe.
Entrei no mundo pelas " vias olfativas" . A partir daí, afetos e olfato não se desgrudaram mais!
Alegria, tristeza, saudade.... Maresia, tinta a óleo - a de pintar quadros, não a de parede - , polenta com leite quente e açúcar, café, grama aparada, terra molhada, pescocinho de bebê, barriga de cachorrinho novo, um perfume que não existe mais - Schiaparelli - ! A lista não tem fim porque a vida é cheirosa!
E porque é vida tem também as repugnâncias: roupa usada, hábito de freira... Distingo repugnante de desagradável, desagradável é mofo.
Só não consigo distinguir muito bem o cheiro da raiva, talvez porque seja muito parecido com o do medo...

sábado, 1 de agosto de 2015

Formigueiro

Movem- se. Correm de lá para cá tão cheios de propósitos. Não param nunca. A manutenção de seu mundo está na razão direta do movimento. Para que tudo fique em seu lugar urge que corram. Iludem-se pensando que correm "para". Tolice, correm "de", ou melhor, correm "dela". Daquela presença tão fiel, tão constante, tão familiar: nossa velha solidão. Por que tanto medo?  Acomode-a quietinha a seu lado que ela lá ficará tranquila e feliz. Convívio tranquilo e pacífico. Afinal, ela só lhe morde os calcanhares porque sofre de rejeição! 

sábado, 25 de julho de 2015

Abaixo do Equador

Propaganda enganosa. Só calor e carnaval! Alegria geral. Ninguém lê as letrinhas pequenas. Aliás as palavras epicurismo e hedonismo causam um certo arrepio moralista. Simplificadamente, epicurismo é o prazer do sábio, o domínio sobre as emoções, a busca da tranquilidade do espírito. Hedonismo considera o prazer o único bem possível, portanto o fundamento da vida moral. Mas, aqui abaixo do Equador, prazer é prazer e ponto. Aliás quanto mais pensamos em prazer menos nos lembramos de sabedoria e moral. Afinal, tudo do que gosto "é ilegal, imoral, ou engorda"! Prazer está muito mais associado a culpa.
Junto com o calor dos trópicos carregamos uma culpa de nascença e no esforço de pagarmos essa dívida sem remissão aprendemos a valorizar a dor e o sacrifício; único passaporte para um prazer sem culpa ( e sem corpo ) no futuro e no além.
O que pensar então de "Carpe diem"? "Colha o dia. Aproveite o momento". Não é só ilustração de camiseta!
Se dos gregos selecionamos o prazer, dos romanos ficamos com o imediatismo. E haja culpa! 
No entanto, colher o dia é a senha para o prazer sem culpa. Nem passado, nem futuro. Passado é um perigo, porque as boas lembranças trazem saudade e ela dói. As más lembranças amarguram e também dói. Prazer zero. Futuro é só ansiedade,dúvida, insegurança. Ái que dor! 
O agora é a passagem, o passaporte. Passagem pequena, estreita e fugaz porque em um átimo o agora é passado. Então, olhos bem abertos, alma escancarada, espírito em sossego (epicurismo!) para colher sabiamente o prazer miúdo é intenso de se estar vivo e livre para pensar e degustar " o prazer nosso de cada dia "! 

domingo, 19 de julho de 2015

A fábula do grilo


 Não conheço nenhuma. Só a da cigarra e da formiga. A cigarra pensa que a vida é uma festa e a formiga nunca é convidada. 
Sabido mesmo é o grilo. Não grita como a cigarra e não é mudo como a formiga. Sabe a hora de falar e a hora de calar. Ele sim entende de felicidade. Sabe que ela é passageira e que é preciso estar atento para percebê-la. Por isso às vezes fica quietinho. Vai vivendo sua vidinha. Sabe que ela não é só uma festa, mas que às vezes é. E quando é, ele não falta. Então canta para avisar a quem estiver atento.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Encontros

Foi pela janela do ônibus que me levava para o terceiro tempo do dia, que a vi pela primeira vez. Foi por um átimo. A velocidade do ônibus não permitiu mais do que isso. Olhar baixo, passos presos no chão. Num relance vi seu rosto que me pareceu levemente familiar.
Tanto o que fazer, tantas tarefas, tantos desafios. Ao fim de cada dia a satisfação de ter vencido e além disso um grande cansaço. Esqueci-me daquele breve encontro. 
Depois de um bom tempo, novamente por uma janela, revejo-a. Ela era a mesma. O mesmo olhar baixo, os mesmos passos presos no chão. Eu não. Não era mais um ônibus que me levava, era um carro que me trazia. As tarefas tinham diminuido e o tempo não estava mais tão comprometido. Dessa vez nossos olhares se cruzaram e novamente a mesma sensação de familiaridade.
Fica um leve incômodo. Aquele rosto familiar, mas de onde? Passo a procurá-la toda vez que saio. Sigo pessoas que me olham desconfiadas. Nada. Desisto da procura.
Mais algum tempo e um novo encontro. Não estava de passagem em calçadas anônimas, passeava com os mesmos olhos baixos, os mesmos passos presos no chão, no quintal de minha casa. Agora sei de onde a conheço.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

..... E o gato subiu no telhado

Se o gato tem sete vidas, já o deixei para trás e muito. Tenho tantas que já perdi a conta e com mais uma vantagem ( ou não ?): as dele são sucessivas, as minhas coexistem. 
O que nenhum gato nunca me contou é se a cada uma é um começar do zero. Se for, sorte dele porque para ele será sempre o tempo do agora.
Comigo a coisa é bem diferente:  o agora é um tempinho espremido entre o era e o será e isso dá um trabalho danado. Além disso essas múltiplas vidas tem uma autonomia irritante, fazem de mim mera personagem. 
Resta ainda um grande desafio: essas vidas concomitantes e autônomas que se apresentam e se escondem a seu bel prazer, misturando tempos e espaços, me impedem de escrever um livro de memórias . Memórias organizadas, lógicas, arrumadas. Cronologia? O que é isso?
Só me resta a esperança de, como Brás Cubas, escrever minhas memórias póstumas....

Receita para anotar receitas

Substitua rapidamente gramas por punhados, pitadas, colheradas.
Para o bem da saúde do corpo e da alma alguns ingredientes devem ser evitados, outros quanto mais melhor.
Menos de exatidão
Mais do imponderável
Menos de ciência
Mais de magia
Menos de elementos
Mais de poções
Menos de técnicos
Mais de homens

domingo, 28 de junho de 2015

Desinspiração

Onde se escondeu minha inspiração?
Sempre esteve aí, tão à mão! 
Pergunto ao coração e ele responde
"Aqui não está não. Segue tudo em paz no batidão"
Mas que aflição!
Impossível qualquer produção
Nem com muita transpiração!
Procurar não é a solução
Só me resta ficar na aflição
Acabar com a paz do "batidão"
Na dor está a solução!

sábado, 27 de junho de 2015

Miudezas

Ah! vento, por que? Estava tão quieta, tão letárgica! Quase como um boi. Se tivesse cauda, estaria abanando para espantar qualquer eventual mosca ou só porque sempre fora assim a natureza dos bois. Só não atingira ainda o estado total de boi porque os olhos teimavam em procurar o horizonte, essa linha de encontro de azuis que me fascina. O do céu, quase denso, sem nuvens que lhe desse leveza. Pote de tinta derramado. O do mar, quase verde, quase cinza. E eu presa nessa linha limite. Gente querendo um momento de bicho, mas condenada ao estado de gente pelo simples fato de querer.
Aí vem você , vento, e rola aquele restinho de cigarro manchado de batom vermelho. Rola, rola e o deposita bem perto de meus pés.
Pronto. O que você queria ? Já vi.
Jogada de novo, sem, piedade,  na doída humanidade. Um soprinho me tira do infinito e o ínfimo, de repente, é muito maior, porque na guimba tem batom, no batom uma boca, na boca uma mulher, nela um coração e nele ....

"Ligeira" (Denominação para andarilho típica do interior paulista)

Caminheira, viageira, "ligeira"
Sem eira nem beira
Porque a vida não pesa
É só companheira.
Sem saco nas costas
Nem bagagem de mão
Só pensamento e chão
Pensamento cavalo baio
Pisa firme no chão
No trote, no galope
Acompanha o coração
Só o verso é de "pé quebrado"
O cavalo não.
Tropeira com seu cavalo
Já bateu muito chão
Porque a vida companheira
Também é boa estradeira
Não tem medo de poeira
Só quer seguir fagueira
Até que não possa mais não.

Gratidão

Em algum momento Lispector disse: escrevo para não enlouquecer.
Por que escrevemos, pintamos, esculpimos? Para encontrarmos respostas a questões pessoais e incômodas. A arte não é asséptica. Obra e artista ( ou obreiro?) dialogam sempre. 
Escrevo por uma questão genética. Tive avôs anarquistas e feministas. Sem saber, até porque suas breves vidas não lhes deu tempo para ver, foram as portas por onde escapei de uma castração que me aguardava escondida atrás de cada "manual para moças". Fugi de uma herança indesejada.
Um avô artista, outro artesão. Um sente as dores da alma e convive com elas. Outro usa as dores do corpo e as transforma em poder. Ambos em mim. Escrevo para transformar a dor em voz.
Obrigada a ambos e a outros que depois deles não me estenderam tapetes mas acreditaram em meus pés e em meus olhos.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Declaração de amor

Vivemos a era dos genéricos, dos medicamentos, louvados por uns, questionados por outro. A partir dos medicamentos chegamos ao genérico das emoções. Parece que são, mas serão?
As redes sociais são o genérico das amizades. "Tenho centenas de amigos ! "  Como isso é possível? Procurem outra palavra no vernáculo porque amigo não é isso não.
Os histéricos fãs clubes transformam o amor em algo coletivo e indiscriminado. Genérico.
O sexo também não escapou da avalanche. Alguns estilos musicais, uns nacionais outros importados, assolam esta e outras terras. Sugerem, estimulam, provocam uma sexualidade generalizada, sem destino. Genérica.
Não encontro em nenhum dicionário definições para esses fenômenos, porque amizade, amor, sexo são outra coisa. Exigem pessoalidade, individualidade, discriminação.
A máxima desses movimentos bem poderia ser o verso de uma música que já tem alguns anos: " Sou de todo mundo e todo mundo é meu também"
Agora chegamos ao genérico dos genéricos: o politicamente correto e excessivamente divulgado " Amor à humanidade" . Isso me parece a história do Saci que nos contavam na infância. A gente fingia que acreditava. Não cheguei, nem chegarei a esse nível de abstração. Não consigo por no mesmo saco violentadores e abnegados. O máximo que consigo, em nome de minha verdade, é dizer que abomino uns, entendo muitos, admiro outros e amo mesmo só alguns.
Então quando faço minha declaração de amor ao mar, faço com a mesma discriminação.
Não amo o mar dos tsunamis, nem os que se movem sobre areias pedregosas, nem os aprisionados em gargantas estreitas. Amo o mar da baía de Santos com seu horizonte despudoradamente escancarado, que, por ser mar tem em si a possibilidade do rugir do tsunami, mas que optou pelo marulhar, pelo acariciar, pelo conversar.
Certa vez um amigo me disse que conversar é fazer versos junto.
Esse é o mar que amo pessoal e intransferivelmente.
O mar que provoca a poesia até em crianças. Nas palavras de minha neta quado pequenina para se referir à espuma das ondas: " Vovó, as ondas têm florzinhas na cabeça."

domingo, 21 de junho de 2015

MALABARISMOS



Equilibrar o sorriso até um segundo antes dele virar máscara

Andar no arame da dor até um segundo antes dela virar amargura.




DIREITOS AUTORAIS

Frases moralizantes que de tão repetidas quase viram verdades. Autores desconhecidos perdidos na POEIRA DOS TEMPOS, USADOS E ABUSADOS por quem queira. Não cobram direitos mas também não se responsabilizam pelo dito. E entre O DITO E O NÃO DITO é que MORA O PERIGO.
Uma delas, CONSTRUIR O FUTURO deve ser parente de QUERER É PODER! Esta última desde Freud tem perdido status, embora alguns ainda a defendam com UNHAS E DENTES.
Quanto á primeira que tal confrontá-la com algumas da mesma espécie? O FUTURO A DEUS PERTENCE ou ainda O HOMEM PÕE E DEUS DISPÕE. 
Escolha a que mais combina com você e aguente seu analista caso ele também tenha lá suas preferências. 
Quanto a mim, agora que meu futuro é bem mais curto do que no tempo em que acreditava em frases moralizantes e que adquiri uma certa humildade, só me arrogo o direito autoral do meu passado. Direito que cobra mais do que paga. A VIDA É UM SEGUNDO ou NÃO HÁ MAL QUE SEMPRE DURE NEM BEM QUE NUNCA SE ACABE? Só tome cuidado para não inverter a ordem dessa última.
Fico com o presente e caminho cuidadosamente tentando evitar os plágios, ser o mais verdadeira possível e percorrer sem pressa meu CAMINHO DAS PEDRAS. Ih!!!!

domingo, 31 de maio de 2015

Brincar de Casinha

Sou especialista. Venho me aperfeiçoando ao longo dos anos. Como boa brincadeira só sei como começa, nunca como acaba e quando acaba começa-se de novo, por isso dá para brincar a vida inteira sem enjoar. O inusitado do fim é que é o encanto. Podemos construir infinitas casinhas, mas não abandoná-las. Elas não sobrevivem ao abandono.
Para quem quiser aprender posso dar algumas "dicas".
Logo de início aguce os sentidos e desligue a razão. Uma boa brincadeira de casinha não pode ter um "pra quê". Isso já iria estragar o inusitado.
Coloque ao alcance da visão só o que for significativo. Cada coisa tem que contar uma historinha. Evite espaços que sua vista não alcance. 
Que sons e silêncios não se conflitem, se completem. 
Para uma casinha de verdade são necessários cheiros vivos: café, bolo no forno, terra molhada e tantos outros.
Muito importante também é o macio de uma coberta e de uma conversa.
O paladar é a soma dos outros quatro.
A respeito de porões e sótãos cabe um aviso.
Porões normalmente desconsideram a visão e o olfato. Quando há luz é artificial, quando há cheiro é morto. A escuridão libera nossos medos e nos imobiliza. No escuro nem o medo tem cara, pode até ser um medo alheio.
Sótãos são depósitos de apelos que impedem o fluir da brincadeira. Ia dizer depósito de inutilidades, mas não é isso não. Ser inútil é essencial para brincar.
Gosto muito de escadas, mas há que se ter cuidado e saber usá-las.
Certa vez desci uma que me levou até um porão onde fiquei aprisionada muito tempo. Deu um bom trabalho para achar a saída. Estava quase me acostumando com ele. Esse é maior perigo.
Subi-las exageradamente também é perigoso; perdemos as referências. Bom mesmo são escadas para subir pulando degraus, escorregar no corrimão ou então desfilar por ela como princesa.
Uma casinha bem arrumada recebe visitas, mas só de convidados muito especiais.
Quem no lugar de versinhos recita teorias não é bem vindo.
Boa brincadeira a todos.

sábado, 9 de maio de 2015

Bambús e Coqueiros

Bambús aprenderam a falar com o vento do rio.
Coqueiros com o do mar.
Bambús sussurram.
Coqueiros farfalham.
Bambús se recolhem.
Coqueiros se exibem.
Bambús reverenciam.
Coqueiros se erguem.
Bambús choram.
Coqueiros gargalham.
Tenho dias de bambú
e outros de coqueiro.



sábado, 11 de abril de 2015

Coleções

Há quem colecione latinhas, caixinhas, bichinhos os mais diversos, uma infinidade de quinquilharias de valor inestimável para o colecionador e quando muito algo curioso para os céticos.
Existem também as coleções que escapam a essa definição; aquelas às quais se atribui uma elevada função: os livros, por exemplo.
Eu coleciono janelas, mas não são quaisquer janelas, daquelas que estão referidas ao espaço. As minhas são janelas que se abrem para o tempo.
Cuido muito bem delas e as conservo arrumadas e desempoeiradas em minha memória.
São de todos os tipos e materiais, não há a menor preocupação em ordená-las por qualquer critério; só estão lá me acompanhando para onde quer que eu vá.
Além disso, minha coleção tem outra peculiaridade: não sou eu quem procuro novas peças, elas que me encontram. A mim só compete estar viva para que minha coleção aumente.
Tenho uma bem antiga, acho que é a mais antiga, dessas que se abrem diretamente para a rua, onde uma menininha sorridente está sentada abraçada a seu cãozinho, amparada pela mãe, com as perninhas balançando soltas. Quando essa janela me encontrou aprendi o que é ternura.
E janelas aos pares! Quem conhece? 
Com elas se pode juntar dois mundos: o de fora e o de dentro. Tenho um par dessas. São de madeira rústica com pintura azul, um pouco descascadas. Estão unidas em ângulo e ao lado de cada uma está um dos ganchos que sustentam a rede. O balançar deixa ver através de uma, de outra, de uma, de outra... Uma mostra um quintal de terra batida onde crescem sem ordem couves e flores. Outra deixa ver uma rua sonolenta de cidade de interior. Na sala o pêndulo do carrilhão acompanha o balanço da rede. Essas janelas me ensinaram o devaneio.
Tenho também uma bem pequenininha, sem adorno algum, monástica. Estivera em uma saleta minúscula onde só cabiam o piano e uma menina que só podia estudar. Parece que quem colocou a janela ali não queria que a menina visse o mundo, mas do lado de fora cresciam grandes árvores transgressoras que exibiam suas copas para a menina. Com essa janela aprendi a liberdade.
Certa vez encontrou-me uma janela triste. Era grande, uma de inúmeras iguais a ela. Havia estado muito tempo em um andar alto de edifício. Vira uma elegante avenida perder seus contornos de nobreza. Trazia estampada entre seus caixilhos uma mulher que espera a filha chegar da escola. Com ela aprendi devoção.
E outra então! Entre todas é a mais enfeitada. De grades rendilhadas infiltrou-se insidiosa em minha coleção. Exibe grades porque além delas há o nada. Quem a visse não diria que me ensinou o desespero.
Minha mais recente janela é talvez a mais querida. É simples e mágica. Sempre aberta, filtra a luz com cortina branca, lembrando outras de outros tempos. Deixa ver o dia e a noite, o ontem, o hoje e sugere o amanhã. Carrega todos os tons do azul e mesmo o mais negro brilha. Não me ensinou nada, só me mostra que tenho vício de felicidade.


segunda-feira, 9 de março de 2015

Ação de despejo

Olhando para uma praça na Avenida Ana Costa - Santos - existe um edifício de arquitetura típica dos anos 50. Formas sinuosas, carnudas. Não foi desenhado com régua, foi feito pelo movimento das ondas que estão ali perto.
Em um de seus apartamentos, varanda aberta para o mar, meus sonhos e fantasias juvenis se fizeram locatários.
Nunca deixei de visitá-los nesses últimos 50 anos. Surpreendia-me ao ver que o tempo que se alimentou de minhas carnes não lhes marcava as faces.
Permaneciam jovens, inquietos, sorridentes.
Vai que um dia deparo-me com placa: "Vende-se".
Se as carnes firmes tinham sumido, a conta bancária até que estava vigorosa.
Ia comprar o apartamento. 
Dia marcado com a corretora. Ansiosa, chego antes do horário. Olho novamente aquelas curvas doces, pela última vez, pelo lado de fora.
Um aperto no peito me avisa do perigo. Vou entrar por uma porta e meus sonhos e fantasias sairiam por outra. Desalojados, despejados, não sobreviveriam ao peso de minha realidade. Magoados, jamais me dariam seu novo endereço.
Rapidamente me afasto do lugar marcado com a corretora que nunca pode entender aquela mudança.
Pacificada, continuo meu passeio com os olhos encharcados das curvas sinuosas e carnudas.


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Setênios

Dez setênios e algumas coisinhas mais...
Algumas rugas a mais
Um pouco de flacidez a mais
Memórias...muitas mais!
Felicidade (que bom!) também mais
Sabedoria; procuro sempre mais
Serenidade, encontro-a cada vez mais
Dores; as possíveis, esconjuro-as mais e mais
Solidão; convivemos pacificamente. Nada demais!
Amor; agora sim o conheço bem demais
Liberdade; encharco-me dela até não poder mais
Setênios; quantos mais?


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Branca de alma preta

Da ascendência europeia herdei uma loirice e uns olhos claros, mas no pacote veio um manual de instruções. Como andar, como sentar, o que sentir, no que crer, e qualquer coisa fora disso, desprezar. Até meu destino após a morte já estava determinado: virar pó!
Em algum momento, não sei precisar quando, e também não foi nenhuma explosão de consciência, comecei a perceber que além de minhas “verdades” existiam outras e que afinal sempre estivera olhando o mundo através de uma janela fechada.
O primeiro movimento expontâneo foi abrir a janela e sentir outros cheiros, outras temperaturas, outros sons.
Descubro então o meu lado preto. Deixei de ser monocromática. Zumbi lutou para não se perder de si mesmo, eu lutaria para encontrar o meu.
Transformei meu manual de instruções numa revistinha ilustrada colorida.
Andar como quem dança.
Sentar para que o colo seja ninho.
Sentir que o tamborim me emociona mais do que o piano.
Crer no bem e no mal onde quer que ele se encontre e depois de morta virar areia da praia. Sou alérgica a pó!